30 - Everything in its right place
Nota: Este post é uma reflexão dos arquitectos, paralela à obra. Talvez por ser longa e maçuda, chamámos-lhe “teorias”.
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Os arranjos exteriores estão agora numa fase final de execução. O resultado final, no entanto, não foi originalmente projectado desta forma.
Desde o início concebemos os arranjos exteriores como uma superfície contínua, revestida a um mesmo material que resolvia as três situações de encaixe da casa no terreno: dois muros de contenção e uma plataforma onde o edifício assenta. No início pensámos utilizar as pedras do edifício existente a demolir para realizar esse plano contínuo.
Entretanto abandonou-se a opção da pedra e foram-se testando várias alternativas para resolver um problema técnico de uma forma que fosse interessante “conceptualmente” – já voltaremos a este palavrão. A solução preferida dos arquitectos, era a de realizar essa superfície contínua em asfalto, um material suficientemente plástico que permite a realização de grandes superfícies sem juntas de dilatação mas que garantia, de acordo com as especificações de um produto chamado IRR comercializado pela Asfalto Via, 40% de permeabilidade (uma característica interessante em Reserva Ecológica Natural).
Esta solução seria ainda tecnicamente justificável pelo facto do projecto de contenção licenciado prever uma parede em betão ciclópico (mistura de pedra local e cimento). Esta parede teria um acabamento tosco que justificaria um revestimento qualquer.
A solução construída, em face do que se encontrou na escavação, foi o que está documentado fotograficamente no blogue. São muros em betão armado com um acabamento bastante perfeito. Tão perfeito que não encontramos agora qualquer justificação plausível para os revestir a outro material e que por isso ficarão assim mesmo. A plataforma onde assenta a casa será, em princípio, revestida a asfalto.
As diferenças que esta alteração implicou estão representadas nos esquemas.
A solução inicial era uma superfície contínua revestida a um mesmo material (pedra, relva, asfalto foram algumas das opções consideradas).
A solução construída é um muro de contenção em betão + uma plataforma plana num outro material + um muro de contenção em betão.
Isto é, teremos três elementos a resolver as 3 situações de contacto da construção com o terreno. Everything in its right place.
É aqui que o palavrão “conceptualmente” deve regressar. É que se é evidente que a questão técnica ficou resolvida, aliás, bem resolvida, o “conceito” com que queríamos brincar, em parte, perdeu-se. Este aspecto, sendo mais ou menos irrelevante para a “obra” está no centro, por assim dizer, da arquitectura enquanto disciplina teórica e artística. É também um dos motivos mais frequentes de incompreensão da nossa profissão, provavelmente por frequentemente colidir com as motivações dos outros intervenientes no processo, dos empreiteiros ao dono de obra. O mais difícil em arquitectura parece ser aliás encontrar a “necessidade” adequada para a conceptualização, num limite em que seja compreensível e justificável para todos.
Pensamos que o mais interessante em arquitectura não é resolver problemas, é resolver problemas criticamente. De uma forma que questione as práticas correntes da construção e, se é permitida esta ambição, da sociedade em que vivemos. Isto é, resolver problemas técnicos, que originem problemas de um outro tipo, não-técnicos.
No Plano B tentamos reflectir sobre a importância que a protecção do ambiente ganhou no modo de vida das sociedades industrializadas, que simultaneamente não querem prescindir de elevados níveis de conforto e segurança. No entanto, utilizar materiais naturais na construção não implica necessariamente menores impactos ambientais. Qualquer construção é uma violência. Uma violência menor não deixa de ser uma violência.
Temos tentado utilizar os materiais de construção para este fim “crítico”. Parece-nos que a utilização de betão simplesmente já não permite reflectir sobre nada para além da sua própria materialidade. Daí talvez que os comentários aos muros de betão em posts anteriores sejam relativos à sua beleza “física” (também no sentido pejorativo com que a beleza física, nos humanos, é frequentemente avaliada, como se não houvesse nenhum valor próprio em ser-se belo, mas apenas em ser-se inteligente ou bom).
Isto é, o betão perdeu a capacidade de ser crítico ou ter sentido de humor, sobretudo quando é utilizando “in its right place”. Porque o seu lugar estendeu-se a todo o lugar, num “mundo da betonização padronizada” (conforme um dos comentários ao post 8).
Em resumo, não haverá qualquer dúvida: ali estão muros de contenção, aqui está o sítio para o guarda-sol e para estacionar o carro. Mas já não haverá a hipótese subtil de transformar o que funcionalmente é um muro de contenção num momento de espanto e dúvida sobre a função de uma superfície estranha, num qualquer material improvável.
Pensamos que se perde alguma força e carácter, limitando a resolução de um problema técnico a isso mesmo. O que não tem nada de mal, apenas diminui a possibilidade de uma reflexão para além dos materiais, mas com a utilização dos materiais.
Não passámos a gostar menos do projecto. Nem de betão, que é de facto um material fantástico, uma conquista da inteligência humana. Nem tão pouco à forma contida e tecnicamente irrepreensível com que está a ser utilizado nesta obra. É apenas uma tentativa de esclarecer ... o que é que estamos a tentar dizer.
What is that you tried to say?
What was that you tried to say?
Tried to say... tried to say…
Tried to say… tried to say…
Radiohead "Everything in its right place"
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Os arranjos exteriores estão agora numa fase final de execução. O resultado final, no entanto, não foi originalmente projectado desta forma.
Desde o início concebemos os arranjos exteriores como uma superfície contínua, revestida a um mesmo material que resolvia as três situações de encaixe da casa no terreno: dois muros de contenção e uma plataforma onde o edifício assenta. No início pensámos utilizar as pedras do edifício existente a demolir para realizar esse plano contínuo.
Entretanto abandonou-se a opção da pedra e foram-se testando várias alternativas para resolver um problema técnico de uma forma que fosse interessante “conceptualmente” – já voltaremos a este palavrão. A solução preferida dos arquitectos, era a de realizar essa superfície contínua em asfalto, um material suficientemente plástico que permite a realização de grandes superfícies sem juntas de dilatação mas que garantia, de acordo com as especificações de um produto chamado IRR comercializado pela Asfalto Via, 40% de permeabilidade (uma característica interessante em Reserva Ecológica Natural).
Esta solução seria ainda tecnicamente justificável pelo facto do projecto de contenção licenciado prever uma parede em betão ciclópico (mistura de pedra local e cimento). Esta parede teria um acabamento tosco que justificaria um revestimento qualquer.
A solução construída, em face do que se encontrou na escavação, foi o que está documentado fotograficamente no blogue. São muros em betão armado com um acabamento bastante perfeito. Tão perfeito que não encontramos agora qualquer justificação plausível para os revestir a outro material e que por isso ficarão assim mesmo. A plataforma onde assenta a casa será, em princípio, revestida a asfalto.
As diferenças que esta alteração implicou estão representadas nos esquemas.
A solução inicial era uma superfície contínua revestida a um mesmo material (pedra, relva, asfalto foram algumas das opções consideradas).
A solução construída é um muro de contenção em betão + uma plataforma plana num outro material + um muro de contenção em betão.
Isto é, teremos três elementos a resolver as 3 situações de contacto da construção com o terreno. Everything in its right place.
É aqui que o palavrão “conceptualmente” deve regressar. É que se é evidente que a questão técnica ficou resolvida, aliás, bem resolvida, o “conceito” com que queríamos brincar, em parte, perdeu-se. Este aspecto, sendo mais ou menos irrelevante para a “obra” está no centro, por assim dizer, da arquitectura enquanto disciplina teórica e artística. É também um dos motivos mais frequentes de incompreensão da nossa profissão, provavelmente por frequentemente colidir com as motivações dos outros intervenientes no processo, dos empreiteiros ao dono de obra. O mais difícil em arquitectura parece ser aliás encontrar a “necessidade” adequada para a conceptualização, num limite em que seja compreensível e justificável para todos.
Pensamos que o mais interessante em arquitectura não é resolver problemas, é resolver problemas criticamente. De uma forma que questione as práticas correntes da construção e, se é permitida esta ambição, da sociedade em que vivemos. Isto é, resolver problemas técnicos, que originem problemas de um outro tipo, não-técnicos.
No Plano B tentamos reflectir sobre a importância que a protecção do ambiente ganhou no modo de vida das sociedades industrializadas, que simultaneamente não querem prescindir de elevados níveis de conforto e segurança. No entanto, utilizar materiais naturais na construção não implica necessariamente menores impactos ambientais. Qualquer construção é uma violência. Uma violência menor não deixa de ser uma violência.
Temos tentado utilizar os materiais de construção para este fim “crítico”. Parece-nos que a utilização de betão simplesmente já não permite reflectir sobre nada para além da sua própria materialidade. Daí talvez que os comentários aos muros de betão em posts anteriores sejam relativos à sua beleza “física” (também no sentido pejorativo com que a beleza física, nos humanos, é frequentemente avaliada, como se não houvesse nenhum valor próprio em ser-se belo, mas apenas em ser-se inteligente ou bom).
Isto é, o betão perdeu a capacidade de ser crítico ou ter sentido de humor, sobretudo quando é utilizando “in its right place”. Porque o seu lugar estendeu-se a todo o lugar, num “mundo da betonização padronizada” (conforme um dos comentários ao post 8).
Em resumo, não haverá qualquer dúvida: ali estão muros de contenção, aqui está o sítio para o guarda-sol e para estacionar o carro. Mas já não haverá a hipótese subtil de transformar o que funcionalmente é um muro de contenção num momento de espanto e dúvida sobre a função de uma superfície estranha, num qualquer material improvável.
Pensamos que se perde alguma força e carácter, limitando a resolução de um problema técnico a isso mesmo. O que não tem nada de mal, apenas diminui a possibilidade de uma reflexão para além dos materiais, mas com a utilização dos materiais.
Não passámos a gostar menos do projecto. Nem de betão, que é de facto um material fantástico, uma conquista da inteligência humana. Nem tão pouco à forma contida e tecnicamente irrepreensível com que está a ser utilizado nesta obra. É apenas uma tentativa de esclarecer ... o que é que estamos a tentar dizer.
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Tried to say... tried to say…
Tried to say… tried to say…
Radiohead "Everything in its right place"
5 comentários:
Bom texto, Eduardo. Que viva o betão, essa antiga conquista do espírito humano e mais ainda o betão armado, conquista mais recente mas igualmente meritória.
Atesto aqui que fiquei um pouco surpreendido (pela negativa) com o asfalto.Não entrou bem no esquema mental que tenho vindo a elaborar para este vosso projecto. Não quero naturalmente intrometer-me muito, mas não sei se conhecem um material de solo chamado "Aripaq", normalmente utilizado em caminhos exteriores, jardins e outros ambientes agressivos. É capaz de resolver a questão da superfície homogénea que pretendem, tem muitas e variadas tonalidades (em redor do terroso) e eu estou a utilizá-lo, com bons resultados, no projecto de Acessos Universais nas áreas protegidas. Quanto à permeabilidade, ela apresenta valores superiores aos 40% desse asfalto que referem.
Se quiserem contactos avisem.
Quanto à obra, verifico, feliz, que segue a bom ritmo.
"Keep the car running"
Mais um abraço a juntar aos anteriores.
P.S.- Vocês têm muita sorte com o cliente, hem?
Bem re-aparecido ricardo, de facto temos bastante sorte com o cliente! Agradecíamos bastante o tal contacto para o material menos alarmante!
Boa Eduardo !
Texto limpido.
Obrigado, Ricardo, pela sugestão do Aripaq. Investigámos imediatamente, e gostei logo do aspecto. Infelizmente, e escrevo isto já após a massa fria de asfalto ter sido aplicada, várias questões se levantaram que acabaram por não possibilitar a sua aplicação: o preço (só fornecem com aplicação e não só o material, razão porque o preço se eleva ainda mais); os 'timings' (já estava tudo preparado para o asfalto esta semana); a inclinação de 30% na rampa do carro (o Aripaq só vai até 15%); a altura que o material precisaria (maior do que os remates limítrofes já aplicados, o que implicaria também maior volume de brita e portanto maior impacto). Enfim, surgiu tarde demais para esta obra, mas foi uma sugestão muito valorosa e agradeço a mesma.
Quanto à sorte dos arquitectos com o cliente ... O que fazer quando na vida nos oferecem profissionalismo e talento de bandeja? Dar graças, dar graças, e valorizar o mais que se pode. Saiu-me a sorte grande. Quem sou eu para lhe pôr entraves?!
"resolver problemas criticamente" aí está a questão, e os compromissos satisfatórios, penso que a prática da nossa profissão é feita disso, desde do primeiro contacto com o cliente e a intenção de projecto. Quanto aos materiais, estou cada vez mais convencida que a consulta de profissionais, materiais, técnicas, que tantas vezes se deixa para a fase do projecto de execução ou mesmo da obra, é crucial no início do projecto, quanto mais houver "gestos", outro palavrão, que queremos definidores do projecto na sua forma final.
Veremos como fica o resultado final do asfalto e do betão no conjunto, não tanto quanto ao contraste de materiais, cores e texturas, mas quanto à forma. É claro que gostava da ideia da superfície una que se desdobrava, parece-me que será um compromisso satisfatório ;)
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